“Os Propagandistas no Largo da Lagoa – (1970?) ”

O som forte da voz de propaganda troou por toda aldeia, fazendo acorrer, em poucos minutos, ao largo da Lagoa, centenas de pessoas inquietas, em sobressalto, como que, surgidas do nada.
Em cima duma carrinha contendo cobertores, roupa interior, pomadas, entre outras coisas, havia um homem de meia-idade e um rapaz.
A assistência maravilhava-se com o papaguear da propaganda, mas muito poucos se atreviam a comprar. E o homem continuava sempre:
-...Pois não é por cem, nem por oitenta que leva esta toalha bordada pelas melhores bordadeiras deste país! É por cinquenta, meus senhores e minhas senhoras! Reparai, olhai e vejam este lindo tecido de linho! E ainda se levar a toalha pelos cinquenta escudos, aqui tem um par de guardanapos do mesmo tecido que lhe ofereço eu! E ainda há mais: uma caixa desta pomada santa...
No princípio custava a comprar, mas depois de dois ou três darem o exemplo, tudo se tornou uma questão de hábito, apesar da magreza das carteiras.
E o homem continuava:
- Reparem neste lindo cobertor felpudo que torna as noites frias em noites de verão! E por quinhentos escudos, meus senhores e minhas senhoras, levará um cobertor, estas almofadas, estas camisas e este xaile para passear nas noites de luar! Vejam caros senhores a pechincha desta carga fabulosa! Mas, atenção, ainda não é tudo! Eu disse quinhentos escudos? Pois ainda menos do que isso! Fazemos uma troca! Os senhores dão-me o dinheiro, eu dou a carga e depois, caros senhores, reparai bem, depois, voltarão a receber o dinheiro!
Aqui, a assistência interrogava-se e não queria acreditar. Ouviam-se murmúrios de desacordo:
- Vigaristas! Ladrões! Vão mas é enganar a vossa avó!
- Calma meus senhores! Vou mostrar-lhes em como não sou nenhum charlatão! Ora comecemos. Quem quer entregar-me primeiro os quinhentos escudos? Juro por esta criança que aqui está a olhar para mim que voltarei a dar o dinheiro, quando receberem a carrada. E já sabem, se eu fizer alguma trafulhice, podem-me agarrar pelos cabelos e mandarem-me pelo vale abaixo.
Era tão convicto nesse juramento que imediatamente as pessoas acreditaram, indo logo algumas oferecer a nota pretendida e, numa rapidez mecânica, as cargas estavam nas mãos das pessoas, juntamente com a nota de quinhentos escudos. Parecia impossível, mas a verdade estava ali à vista de todos, como num sonho!
Em cinco minutos o ar agitou-se de barulho, de emoção e de inveja. A poeira do recinto girava em volta desta fúria louca, formando um círculo de pó, pairando no ar, como que a proteger aquela folia.
Toni e Pedro olhavam boquiabertos, perfeitamente estupefactos com aquele negócio e exclamavam:
- Mas, o homem tá doido varrido! Olha, olha! Tá mesmo a devolver o dinheiro, à ti Joana!
- Qual doido, meus meninos! Neste mundo ainda se vê gente boa! – Era uma mulher gorda que saltava, estremecendo, atirando com a carga ao ar e exibindo a nota.
Por toda a parte se viam mulheres a discutir o seu lugar na fila, com medo que as cargas acabassem. E o homem continuava, gritando bem alto:
- Calma que chega para toda a gente! Mas, para ser mais rápido, façamos uma coisa... As pessoas que querem carrada ponham ali a nota naquela caixa e depois vão para detrás do carro, para não se misturarem com toda essa gente. Tá entendido?
- Táaaaa... – Ouvia-se um grito unânime.
O pensamento das pessoas só tinha um fito, a carga em troca da nota emprestada. Quem não tinha dinheiro, batia no ombro do vizinho e dizia:
Empresta-me quinhentos escudos, caramba! Deixei a carteira em casa e nunca esperava por isto!
- Tome lá home! Coisas destas não há todos os dias! – E logo ao lado o exemplo corria.
- Oh ti Iria! Na tem aí uma nota que me empreste? Assim que a tiver de novo na mão dou-lha logo!
- Tá bem Maria do Carmo, por acaso até tenho. – E levava as mãos ao lugar dos seios, por debaixo da blusa.
Foi naquela altura que os cofres secretos das gentes simples se mostraram.
Enquanto isto, a assistência apertava em redor do carro. O dinheiro subia na caixa e a fila aumentava no lado oposto ao da carrinha.
O rapaz e o homem continuavam a fazer as cargas e atiravam agora com xailes de lã para cima da assistência. Esta, debatia-se por os agarrar e armavam-se zaragatas, mas as pessoas continuavam felizes, divertidas e foi então que aconteceu o inevitável. O homem disse para o companheiro “agora” e esta palavra como senha, foi o suficiente para que o rapaz entrasse na cabine da carrinha, o suficiente para que fossem atirados talheres para cima do povo em volta, obrigando-os a curvar-se para apanharem as colheres, garfos e facas, empurrando uns, empurrando outros, aumentando o pó que se elevava no ar e que lhes tapava a vista. E foi então, no preciso momento em que aquela multidão se curvava, numa confusão louca que o carro arrancou, deixando uma nuvem de pó ainda maior atrás de si.
Como um raio que atinge algo, a consciência das pessoas recuperou os sentidos e caiu pesada, dentro do poço do engano, da traição. A tristeza desceu ao local onde segundos antes era um espectro. Choraram-se “lágrimas de sangue”, zangaram-se os vizinhos e em vez da união entre todos ser a consequência natural, as rivalidades acentuaram-se e a desunião instalou-se na sua vulgaridade suja que sempre acaba por vencer.
Também Toni e Pedro saíram do efeito hipnótico a que tinham estado submetidos e comentavam agora:
- Nunca vi uma coisa assim! Ao mesmo tempo dá-me vontade de rir!
- Parece estar toda a gente bêbeda, caramba!
Foi então que o riso da criançada encheu o recinto, espontâneo, troçando do engano e da vigarice dos adultos.


Excerto do livro "Toni"
de Elisa Oliveira