Lenda de Santa Iria


De Santa Iria

      Santa Iria foi Portuguesa, como é notório, e natural do Lugar da Torre, Freguesia do Reguengo, deste Bispado, como nele, e particularmente na dita Freguesia, é tradição antiquíssima e constante. Nascida de pais nobres, ricos e católicos, chamados Hermígio e Eugénia, e conforme a mesma tradição, nas suas mesmas casas se fez a Ermida da Santa (posto que Escovar, no Livro dos Arcebispos de Lisboa, segue o contrário). Criou-se a Santa em Tomar (naquele tempo chamada Nabância), com suas tias Casta e Júlia, irmãs de seu pai, em um Recolhimento, com outras donzelas; teve por Mestre o Monge Remígio, de grande fama de virtude e prudência.
      Saindo ela um dia de S. Pedro à Igreja do Santo, a viu Britaldo, Filho que era de Castinaldo, Senhor que era da dita Vila. O qual, de modo se afeiçoou à sua rara formosura, que veio, apertado do fogo de amor, a cair enfermo por lhe não dar lugar a grande honestidade da Santa a se lhe poder descobrir sua afeição; com o que chegou ao extremo da vida, por lhe não poderem aplicar os médicos os remédios convenientes a enfermidade que não conheciam. O qual estado de Britaldo revelou Deus à Santa que, confiada na Divina Graça e levada do Espírito do Céu e caridade do próximo, o foi visitar, com o recato e companhia devida à sua modéstia e profissão. Tratou logo de o desenganar de suas pertenças; e ele se satisfez com ela lhe prometer que jamais se afeiçoaria nem casaria com outro que não fosse ele; o que a Santa prometeu com grande vontade, como quem tinha o seu amor posto em Deus. Deixou-o a santa melhorado, e seus pais o publicaram por milagre. Passados dois anos, que a Santa gastou em exercícios sempre espirituais, sucedeu a desenfreada afeição com que seu Mestre, Remígio, se lhe declarou; e dando-lhe um e muitos assaltos, ela ficou tão firme que, não só com desprezo e severas palavras, mas com heróico furor, repreendeu asperamente o desenfreado despejo de Remígio. Do que ele ficou tão corrido e indignado, que logo buscou traça para se vingar, que foi dar-lhe uma bebida, feita com tal confeição que, pouco a pouco, lhe foi crescendo o ventre, a modo de mulher pejada, e a suspeita de o ser cresceu entre os maus com mais eficácia, sabendo que o Mestre o certificaria, com o que o crédito da Santa começou a perecer. E logo chegou a fama a Britaldo, e com ela o desejo da vingança, porque logo trocou em ódio a grande afeição que lhe tinha, e chamando um Soldado, seu familiar, lhe deu conta do caso, pedindo-lhe brevidade na execução da vingança; e, como a Santa costumava sair a orar nas ribeiras do Nabão, que estava dentro dos limites de seu Recolhimento, foi o Soldado buscá-la a este lugar, onde a achou depois das matinas, posta em oração, com os joelhos em terra e os olhos no Céu; atrvessou-lhe com uma espada a garganta, e a Santa rendeu o espírito a seu Criador; o matador a despojou de seus vestidos de Religiosa, em que estava, e deitou o corpo bem-aventurado no rio. Amanheceu; e, como as tias da Santa viram que não aparecia, como também eram das que duvidavam de sua castidade, entenderam que, pelo temor da infâmia, se ausentara. Mas Deus Nosso Senhor revelou tudo ao Abade Célio, Tio da Santa, e o lugar onde achariam seu sagrado corpo, que logo manifestou ao Povo; e, dando graças a Deus, o foram buscar, com solene procissão, defronte da Vila de Santarém, aonde o tinha lançado a corrente do Zêzere, em cujas águas entrou pela Foz do Nabão. Chegada a procissão ao Sitio da Ribeira, se abriram milagrosamente as áuas do Tejo e, fazendo estrada livre até onde estava o corpo, em um sepulcro admirável, obra dos Anjos, chegaram a venerá-lo com todo o acatamento, derramando muitas lágrimas.
      Intentou o Abade, e os mais que com ele iam, tirar do sepulcro o corpo da Virgem mas, por mais força que para isso fizeram, o não puderam mover; pelo que, persuadidos que era vontade de Deus que ali ficasse, se recolheram e levaram alguns de seus cabelos e parte da camisa como perciosas relíquias que puseram no Mosteiro de Célio, que é hoje de religiosos de S. Francisco, intitulado de Santa Eira, na mesma Vila de Tomar; as quais relíquias foram remédio a muitos cegos, aleijados e a outros enfermos em que tocaram. Apartada a procissão do sepulcro, tomou o rio o seu antigo curso.
      Muitos anos depois, querendo a Rainha Santa Isabel, mulher de El-Rei D. Dinis deste Reino, visitar aqule sepulcro, com semelhante milagre ao primeiro, tornou o Tejo a retirar-se e lhe deu lugar que chegasse a venerá-lo; e conta-se que, querendo o dito Rei D. Dinis seguir os passos da Rainha, lhos atalhou o rio, mostrando que aquele singular favor do Céu era mais devido à santidade que ao ceptro. Deixou a Rainha Santa desta visita um padrão, que mandou pôr no mesmo lugar, tão eminente que nunca o Tejo o encobre, por mais inundações que haja.
      Foi este martírio da Santa no ano de 653, em os 20 dias do mês de Outubro, e neste dia o traz o Martirológico; dela trata Vaseu, na Crónica de Espanha, e o Flos Sanctorum, espanhol, e, mais copiosamente, Andrade Resende (26), no Breviário Eborense, e o padre Escovar, no Livro dos Arcebispos de Lisboa, de quem é quase tudo o acima dito, e outros que ele cita.
      No tempo do martírio desta Santa era Sumo Pontífice Martinho, primeiro do nome; Imperador Romano, Constante 2.º, e reinava na Lusitania El-Rei Rezebuindo.
      Duram ainda por testemunhas deste martírio, segundo o dito Escovar, umas pedras e seixos que se acham no dito lugar em que foi lançado seu corpo, com nódoas de sangue tão vermelho e fresco que parece haver pouco tempo que ali se derramou, havendo 1300 (27) anos que foi o seu martírio.

Excerto do Livro:
 "Couseiro ou Memórias do Bispado de Leiria"
(Transcrição da 2.ª edição de 1898)

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